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sábado, 30 de junho de 2018

Distúrbio



Anelson acordou preocupado demais naquele dia. Não esqueceu dos remédios que lhe eram rotina há alguns meses, mas estava atrasado: muitos afazeres. Banho, café, resignação, respira, inspira, expira, sorriso, volante. Entregas, trabalhava agora com entregas. Dirigia um furgão novo e de cor vibrante. No terceiro café, antes das dez da manhã e com mais de vinte entregas feitas - a meta era cem - lembrou do que havia esquecido: o sonho da noite anterior. Um homem fez sinal de carona, seu nome era Golias, o resignado Anelson soube ao perguntar - nem se tocou direito porque deu carona, só lembrava de ter dado. O sonho foi estranho, quase perturbador, mas havia algo de relaxante. Golias não falava muito, e isso não interrompia o raciocínio de Anelson, que até esqueceu de perguntar onde o "hóspede" queria descer. Seguiu recordando do sonho. Golias tirava uma garrafa de ferro da jaqueta. Para quê? Cheirava a burbom barato.
No sonho, Anelson caiu, e estava longe da Terra. Parece que tinha ido à lua para uma viagem simples, como ir a uma praça, nesse período onírico de data imprecisa, porém, num futuro, as pessoas poderiam visitar os planetas por meio de dutos, ou canos, bem longos, mas nem tão largos. Quem havia pagado para tanto. Alguns animais haviam ganhado, por meio de biotecnologia, a capacidade limitada de pensar, e eram completamente subordinados aos seres humanos. Gorilas e cavalos guiavam as pessoas pelos túneis que levavam aos planetas de nosso sistema solar - dois faltavam, talvez tivesse ocorrido algum acidente neles... Golias comentou sobre um conto, ele não parecia escritor, parecia um boêmio, então o motorista deixou o sonho de lado e perguntou: "Desculpe, não costumo a dar carona, onde gostaria que eu lhe deixasse? Estou indo fazer uma entrega no quilômetro catorze, qualquer lugar no caminho posso parar...". O passageiro não respondeu de imediato, depois concordou ficar debaixo do viaduto, ainda estava longe, Anelson notou que Golias não tinha o braço direito e usava um relógio quebrado, demorou a perceber. O passageiro contou ao motorista que seu conto envolvia uma jovem mulher que estava presa em um pesadelo interminável. Sem querer, o motorista prestou atenção.
Ela se chama Proserpina, e estava sem dinheiro para uma passagem, de alguma maneira ficara isolada num interior distante e esquecido, e agora se sentia perdida, deixara alguém com o coração partido, e essas informações esparsas seriam para confundir o leitor, porque na verdade eram apenas partes do pesadelo, ela na verdade estava dormindo dentro de um ônibus que estava perto de cair num penhasco... O viaduto já estava perto. Anelson lembrou que sua dose dos remédios estava acabando, precisaria comprar mais.
Balcão, fila, calor, sons, anúncios, fila, sorriso. Anelson voltou ao carro, onde Golias e Proserpina lhe esperavam, o passageiro já parecia meio bêbado. E se tivesse um duto em direção ao sol? Havia um detalhe importante no sonho de Anelson que ele não conseguia lembrar direito. "Golias, o que falta ao mundo daqueles que bebem em vergonha?", desesperado perguntou Anelson, já tirando uma drágea da cartela, "o dia", respondeu o passageiro. Era isso que faltava no sonho: o dia não mais existia, apenas a noite. Proserpina não havia morrido, mas não conseguia ver as luzes da manhã - era uma noite sem fim, um pesadelo tão longo quanto os canos de um planeta para outro.
Golias dormia, o peito de andor para o queixo. O relógio agonizava.


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