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sábado, 2 de março de 2019

As luzes de um dia bem escuro

Sete anos se passaram, mas ela ainda lembrava. Não havia motivos para sorrir naquela semana. Havia culto, e isso era tudo. Seria a primeira vez que iria dirigir a reunião semanal que frequentava desde muito jovem. Berenice estava contente, mas extremamente concentrada. Essa sensação foi alguns segundos atrás. A dor vinha de dentro de um dos ombros. Lembrou de Justin, e de como estava decidida a terminar com aquele babaca. Mais segundos atrás. Outra agonia vinha do tórax e a paralisava, além de fazer escorrer muito sangue. Sabia que a mãe estava errada em criticar sua escolha de emprego, e deveria agir como o pai que a apoiava. Os ouvidos começavam a voltar ao normal; sirenes, gritos. Cheiro de gasolina. Alguns segundos atrás, já imaginava como seria a primeira vez presidindo o culto. Calor, chamas; lembrou.
Se distraíra com tudo acontecendo tão rápido em tão poucos dias. Avançou um sinal, um ônibus a acertou na lateral. Estilhaços e ferro retorcido atravessaram seu ombro direito e sua barriga. A coluna fora partida praticamente, o banco pendia para trás, contudo ela estava suspensa, um pedaço de ferro a erguia pelo tórax e o outro a atravessava de um ombro a outro internamente. A dor a fez perder a consciência devagar, logo que o carro começou a pegar fogo. Ela não sentiu nada quando as chamas tomaram sua cabeça, queimando o coro cabeludo e praticamente todo seu rosto. Ela não sentiu os bombeiros rompendo os ferros, ou os maqueiros colocando-a na ambulância, e muito menos o desfibrilador a trazendo de volta à vida. Quando retomou a consciência estava deitada numa cama de hospital, mas não via nada, não sentia odores, e ouvia muito pouco e de forma confusa. Estava viva, porém, morta.
Então, ela chegou.
Era uma enfermeira, se pudesse sentir odores, Berenice saberia que ela usava um perfume de aroma refinado, uma maquiagem leve, contudo, cara e bem feita, o cabelo impecável, todavia, discreto, num corte na altura do pescoço. Ela olhou com muita estima, e ansiedade para Berenice. Sorriu e sussurrou: "Eu vou ajudá-la a tirar a própria vida. Mas também posso lhe ajudar a voltar à vida. Serão horas de cirurgia." Berenice não podia falar. A enfermeira continuou. "Eu vou abrir a janela, colocar a pequena escada na direção dela, e conduzi-la com minha mão esquerda até lá. Quando estiver pronta você pula. A resposta vou descobrir dependendo para onde pulou. Para frente, na direção do asfalto lá embaixo, ou para o lado, na minha direção, e te abraçarei." Berenice entendeu. Ela estava negociando sua alma, ela não sabe como o porquê de ter compreendido aquilo naquela circunstância. Mas enfermeira era um demônio com certeza, uma entidade advinda dos rebeldes que lutaram contra Deus e seus soldados. Tiranos.
As lágrimas escorreram de seus olhos machucados. Estava feliz. Suas preces foram atendidas. Poderia não conduzir o culto daquela semana, mas com certeza iria liderar a seita por muitos anos. O Ministério da Verdade Verdadeira teria uma nova líder. Sua mãe teria que engolir seu orgulho, e Justin iria se arrepender de tê-la deixado. Bastava escolher a direção certa a pular. E o fez.
Do alto, a enfermeira olhava para os pedestres que cercavam o corpo que ainda se contorcia.

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