Algumas vezes a escravidão e a liberdade compartilham tantas mazelas que parece impossível perceber alguma diferença concreta... Ou se de fato a última existe...
Todos os homens que empreendiam aquela ofensiva tinham cicatrizes de chicotes. Todos vestiam o uniforme do Exército Imperial Brasileiro. Todos, com exceção daquele que liderava. Eles adentraram aquela vila pequena e amedrontada... O único som ambiente era o soluço baixo das mulheres que estavam escondidas nas casas. Não havia homens. Nenhum. Quase não havia mais homens em todo Paraguai.
Um dos soldados brasileiros era um escravo, forte, calado, bem escuro, cheio de marcas no corpo e na alma. Sebastião era o nome de batismo, Tião era como o chamavam. Ele era o mais silencioso e mais hábil... Vinga-se do que tinha sofrido nas mãos dos senhores brasileiros nos soldados paraguaios: depois de mortos, ele continuava a furá-los, guardava sempre um dente de um dos que havia matado, já tinha vários... Poucos sabiam da brutalidade do colega, mas não se poderia negar sua determinação e bravura.
Os vários soldados estavam sedentos, estavam com fome, precisavam descansar... A maior casa da vila foi escolhida: dentro havia dezessete fêmeas: três idosas, quatro bem maduras, duas no início da fase adulta e todo resto bem novo... Havia um pequeno garoto também, Julio Lammas, filho mais novo do antigo senhor daquela casa. O único "macho" de todo aquele local. O único que não poderia empunhar uma arma para gosto do líder daquela nação.
Ao pedido dos oficiais brasileiros, as mulheres começaram a servir os homens: primeiramente deram água, depois comida, todo o suficiente para que elas ficassem bem até o final daquela semana, agora não havia mais nada. O conflito estava apenas começando... Eles terminaram de comer e beber o que podiam... Então, a dignidade desapareceu da cabeça da maioria deles... Apenas dois do grupo de vinte homens se recusaram a fazer o que os outros fizeram: quase todas as mulheres foram violadas... Duas meninas que ainda brincavam de boneca foram escondidas e se salvaram (pelo menos naquela noite...).
Enquanto a grande maioria dos homens saciava a carne, um dormia pensando na família que havia deixado no Brasil, outro lia uma bíblia que achara na mão de um paraguaio morto - se divertia por ela estar em outra língua. Tião procurava por algo que poderia render um forte pecado, dores brutais... Ele recordava de cada chicotada que havia levado, de cada caco de vidro que ele já havia se ajoelhado, de cada noite que teve que levar um negrinha, muitas bem novinhas, até os filhos do seu senhor. Ele lembrava de tudo isso ao cometer seus atos aos paraguaios que encontrava. E foi pensando em dores que ele encontrou o pequeno Julio, sentado e chorando. Ele segurou o braço do menino com uma mão e com a outra tapou a boca dele. Nada precisava ser dito. O menino não chorou, mas as dores que se seguiram duraram por toda vida daquele pequeno... E aquele que lê o que fora escrito deve reagir angustiado? Revoltado? Contra os escravocratas? Contra os escravos? Contra os abolicionistas? Contra a Guerra do Paraguai? Contra o Império do Brasil? Contra Dom Pedro II? Menos contra a hipocrisia que o consome: nunca poderá fazer nada para evitar qualquer dor que brotou longe de si... E continuará brotando...
Na manhã seguinte o grupo de soldados continuou. Lutaram. Venceram. Heróis para todo o sempre.
Ao contemplar o poliedro: a Verdade cavalga sobre o COSMO! A realidade agoniza... Ele sonha... E convoca...
Para um rastro de mazelas ínfimas: O comportamento hipócrita desfaz-se rapidamente!
Para um pedaço de sinceridade destituída: Um papel patético contempla a necessidade do palco...
Para anseios vagos e prematuros: A imagem de um provável artista é o suficiente para a mediocridade!
Teclas... Dedos torpes... Desenhando universos podres... Alergia ignorante sobre os rastros artísticos... Uma entidade superior! Clama meus anseios e convoca meus medos! Livre... Para colocar o oblívio no papel...
Sandro desmaia. Arcano olha incrédulo, irritado, e frustrado para Sandro Cohesi estirado nas escadas de mármore... Ele chegou perto, mas ainda não estava preparado. O padre o havia vencido. Ele deveria desistir por ora... então chutou o corpo para o Vazio... E ele caiu até encontrar um reflexo distorcido em qualquer outro lugar.
Na Guiana Francesa, Padre Ferreira continuou a rezar segurando a testa de Sandro. Dois se passaram desde o início dessa reza. Carlla acordou um dia antes da reza acabar, Kanashiro, Aleck e Ed continuaram a caçar outros demônios que se escondiam por Caiena e os arredores...
... Uma história sem sentido... Miasmas desnecessárias... Restos de possíveis memórias em uma mente desocupada...
Assim pensou Sandro Cohesi ao abrir os olhos ver sua mãe e o médico conversando. O que ocorreu depois disso é o esperado pelo leitor: afagos, choros, satisfação... Alívio!
Os pais de Alex Kanashiro o esperaram por muitos dias. Foram até a polícia e fizeram de tudo para encontrá-lo. Até uma ligação, vinda de algum beco sujo e escuro do leste europeu, os acalmou... Mas a frustração seguia-se... Ele não voltaria...
- Afinal, Padre, para onde Arcano queria levar Sandro? - Alex sentado em um hotel barato questionava o clérigo bondoso...
- Nossos sonhos, vontades e desejos são ordinários. Mas alguns são muito fortes... Ouvi lentamente, várias vezes, quando ainda era muito novo, o nome do local: Arkkyia... E a chave que poderia levar até lá... Uma chave viva... Uma entidade... Não sei como determiná-la... Owppallaa... Não sei como se escreve mas encontrei escritos... Isso é o que conecta todos nós... Esta loucura possível. Ed, Carlla e Aleck arranjaram uma forma de lidar com ela. Eu arranjei outra... E você está encontrando a sua. Mas depois de bebermos de licor insano... Nunca poderemos ser os mesmos.
- E Sandro?
- Ele ficará bem... Acredito e espero... Levará uma vida normal até entender que perdeu isso... Ou talvez fora amaldiçoado a nunca ter isso... Ele pode ter passado apenas por um pesadelo... Pode ter vivido ao nosso, se de fato existíamos... Um dia nos encontrará... Ou baterá de frente com outros que o façam: o guiem por essas ruelas tortas de insanidade doentia: que se chama Verdade.
A prima de Sandro observava calmamente o desenho que ele fazia sentado na frente do computador... Um mundo... Um mapa... Um continente... Ele não podia andar... Ela o indagou... Ele não podia falar... Mas balbuciou...